Enquanto eu lia Leite Derramado, de Chico Buarque,
deparei-me com uma passagem que me deixou intrigada com a questão da fragilidade
da memória. O narrador ancião, em um leito de hospital, reflete sobre a condição
tumultuada e tênue dos seus próprios pensamentos: uma miscelânea de lembranças
e de situações presentes. Tive medo das peças que o meu cérebro pode um dia
me pregar. Comecei a pensar, ainda mais, nas pessoas que já sofrem por conta desse
problema. A cabeça é, de fato, tudo! Segue um trechinho:
Aquela que veio me ver, ninguém acredita, é minha filha. Ficou torta assim e destrambelhada por causa do filho. Ou neto, agora não sei direito se o rapaz era meu neto ou tataraneto ou o quê. Ao passo que o tempo futuro se estreita, as pessoas mais novas têm de se amontar de qualquer jeito num canto da minha cabeça. Já para o passado tenho um salão cada vez mais espaçoso, onde cabem com folga meus pais, avós, primos distantes e colegas da faculdade que eu já tinha esquecido, com seus respectivos salões cheios de parentes e contraparentes e penetras com suas amantes, mais as reminiscências dessa gente toda, até o tempo de Napoleão. Veja só, neste momento olho para você, que toda noite está aqui comigo tão amorosa, e fico até sem graça de perguntar seu nome de novo. Em compensação, recordo cada fio da barba do meu avô, que só conheci de um retrato a óleo. E do livrete que deve estar por aí na cômoda, ou lá em cima na cabeceira da minha mãe, pergunte à arrumadeira. É um pequeno livro com uma sequência de fotos quase idênticas, que em folheada ligeira dão a ilusão de movimento, feito cinema. Retratam meu avô a caminhar em Londres, e em criança eu gostava de folhear as fotos de trás para diante, para fazer o velho dar marcha a ré. É com essa gente antiquada que sonho, quando você me põe para dormir. Eu por mim sonhava com você em todas as cores, mas meus sonhos são que nem cinema mudo, e os atores já morreram há tempos.
Chico Buarque de Hollanda
– LEITE DERRAMADO, Cap. 3, grifos meus.
O livro é maravilhoso! As discussões do narrador vão muito (mas muito!) além das confusões da memória. A leitura da obra vale a pena, com toda a certeza.
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