quinta-feira, 5 de junho de 2014

"ANGÚSTIA": um conto russo

Olá, pessoal. Tudo bom?

Trago-lhes hoje um belíssimo conto escrito por Anton Tchekhov (1860-1904), um dos maiores novelistas russos de todos os tempos. O texto abaixo destaca a solidão e a angústia de um homem que precisa desabafar sobre a morte recente do filho, mas que não encontra nenhuma pessoa que o queira ouvir. História triste, melancólica, angustiante, mas muito realista. Com toda a certeza, vale a pena conferir a leitura deste clássico. Se você ainda não leu nenhum conto russo, aqui está uma excelente oportunidade de iniciar os trabalhos...
Até a próxima!

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ANGÚSTIA


“Com quem a dor partilharei?...”
Anton Tchekhov

Anoitece. A neve graúda e úmida gira preguiçosamente ao redor dos lampiões recém-acesos e deita-se em placas ma­cias e finas nos telhados, nos lombos dos cavalos, nos om­bros, nos gorros. O cocheiro Iona Potápov está todo branco, como um fantasma. Está sentado na boleia, curvado, tão curvado quanto é possível curvar-se um corpo vivo, e não se mexe. Se toda uma avalancha se despencasse sobre ele, nem assim, ao que parece, ele acharia necessário sacudir a neve... A sua eguazinha também está branca e imóvel. Pela sua imobilidade, suas formas angulosas e as pernas retas como paus, até de perto ela parece um cavalinho de pão de mel de um copeque. Ao que tudo indica, ela está mergu­lhada em meditações. Quem foi arrancado do arado, das costumeiras paisagens cinzentas, e atirado aqui, neste atoleiro, cheio de luzes monstruosas, zoeira incessante e gente apressada, esse não pode deixar de meditar...
Iona e a sua eguazinha não se movem do lugar já faz muito tempo. Saíram do pátio ainda antes do almoço, porém não fizeram nem uma corrida. Mas eis que a sombra da noite desce sobre a cidade. A luz pálida dos lampiões cede lugar à cor viva e o bulício das ruas torna-se mais ruidoso.
— Cocheiro, para a Viborgskaia! — ouve Iona. — Cocheiro!
Iona estremece e, através dos cílios grudados pela neve, vê um militar de capote e capuz.
— Para Viborgskaia! — repete o militar. — Mas tu estás dormindo, hein? Para Viborgskaia!
Em sinal de assentimento, Iona puxa as rédeas, em consequência do que, placas de neve caem dos seus ombros e do ombro do cavalo. O militar toma assento no trenó. O cocheiro estala os lábios, estica o pescoço à maneira de um cisne, soergue-se e, mais por hábito que por necessidade, brande o chicote. A eguazinha também estica o pescoço, arqueia as pernas magras e, insegura, põe-se em movimento.
— Por onde te metes, lobisomem! — ouve Iona, assim que sai, gritar de dentro da massa escura que balança para diante e para trás. — Aonde te carrega o diabo? Para a direita!
“Não sabes dirigir! Aguenta a direita!”, ralha o militar.
Um cocheiro de carruagem particular pragueja ao cruzar, e um transeunte, que atravessara a rua correndo e batera com o ombro no focinho da égua, olha furioso e sa­code a neve da manga. Iona se contorce na boleia como se estivesse sentado em alfinetes, joga os cotovelos para os lados, e seus olhos correm como possessos, como se não compreendesse quem é e por que está ali.
— Como todos são canalhas! — zomba o militar. — Só procuram abalroar-te ou se jogar debaixo do teu cavalo! É que estão todos de conluio contra ti!
Iona olha para trás, para o passageiro, e move os lá­bios... Vê-se que quer dizer alguma coisa, mas da sua garganta não sai nada, a não ser um som gutural.
— O que é? pergunta o militar.
Iona torce a boca num sorriso, força a garganta e rouqueja:
— É que... patrão... coisa... o meu filho... se finou esta semana.
— Hum!... E de que foi que ele morreu?
Iona volta-se de corpo inteiro para o passageiro e diz:
— E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre... Ficou três dias no hospital e se finou... É a vontade de Deus.
— Vira, demônio! — soa na escuridão. — Estás tonto ou o quê, cachorro velho? Toca para a frente!
O cocheiro torna a esticar o pescoço, a soerguer-se, brandindo o chicote com graça pesada. Depois, por várias vezes, ele se volta para o passageiro, mas este fechou os olhos, e pelo visto, não está disposto a escutar. Deixando-o na Viborgskaia, Iona para diante de um botequim, dobra-se na boleia e torna a ficar imóvel... De novo a neve úmida tinge de branco a ele e sua égua. Passa uma hora, outra...
Pelo passeio, pisando, pisando ruidosamente com as ga­lochas e altercando, passam três rapazes: dois deles são altos e magros, o terceiro é baixo e corcunda.
— Cocheiro, para a Ponte Policial! — grita o corcunda com voz de trêmulo. — Nós três — por vinte copeques!
Iona puxa as rédeas e estala os lábios. Vinte copeques não é o preço justo, mas ele não está para pensar em pre­ço... um rublo ou cinco copeques, para ele dá na mesma agora – haja passageiros... Os moços, aos empurrões e palavrões, vêm para o trenó e sobem no assento todos ao mesmo tempo. Começa a discussão do problema: quais os dois que irão sentados, e qual o terceiro que irá de pé? Após longos debates, bate-boca e acusações, eles chegam à decisão de que deve viajar de pé o corcunda, por ser o menor.
— Anda, toca! — range o corcunda, firmando-se e ba­fejando na nuca de Iona. 
— Descansa o cavalo! Mas que gorro o teu, hein, mano! Pior não se acha em toda Peters­burgo!...
— Eh, eh... eh, eh... — gargalha Iona. — É o que é...
— Anda, tu aí, “é o que é”, toca pra frente! É assim que vais andar o caminho inteiro? E que tal um pescoção?
— A cabeça me estala... — diz um dos compridos. Ontem, na casa dos Dukmássov, nós dois, o Vaska e eu, limpamos quatro garrafas de conhaque.
— Não entendo por que mentir! — enfeza o outro comprido.
— Mentes que nem um animal!
— Que Deus me castigue se não é verdade.
— É tão verdade quanto um piolho tossir.
— Eh... eh... — ri Iona. — Que senhores alegres...
— Arre, que os diabos te carreguem!... — indigna-se o corcunda. 
— Vais andar, carcaça velha, ou não? Isso é maneira de dirigir? Chicote nela! Upa, diabo! Upa! Dá-lhe rijo!
Iona sente atrás das costas o corpo irrequieto e a vi­bração da voz do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê a gente, e o aperto da solidão pouco a pouco começa a afrouxar no seu peito. O corcunda continua a imprecar, até que engasga num palavrão de seis andares e desanda a tossir. Os dois compridos põem-se a conversar sobre uma certa Nadejda Petrovna. Iona olha para eles por cima do ombro. Escolhendo um momento propício, volta-se novamente e balbucia:
— E eu nesta semana... coisa... finou-se meu filho!
— Todos vamos nos finar... — suspira o corcunda, enxugando os lábios depois do acesso de tosse.
— Anda, toca, toca! Deus meu, palavra que não aguento mais viajar assim! Quando é que nós vamos chegar?
— Você poderia animá-lo um tiquinho — na nuca!
— Estás ouvindo, traste velho? Vou te encher de pes­coções! Se a gente começa a fazer cerimônia com a tua laia, acaba andando a pé! Estás ouvindo, Dragão Gorinitch? Ou não te importa o que dizemos?
E Iona ouve, mais do que sente, o ruído do pescoção.
— Eh, eh... — ri ele. — Que senhores alegres. Benza-os Deus!
— Cocheiro, és casado? — pergunta um dos com­pridos.
— Eu, é? Eh, eh... Alegres senhores! Eu agora só tenho uma mulher: a terra úmida... Eh, eh... oh, oh... A sepultura, é o que é!... O filho, esse morreu... e eu estou vivo... Coisa esquisita, a morte errou de porta... Em vez de vir me buscar, foi ao filho...
E Iona volta-se para contar como morreu seu filho, mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que, graças a Deus, eles já chegaram, finalmente. Tendo recebido os vinte copeques, Iona fica longamente a olhar no encalço dos far­ristas, que desaparecem num portão escuro. Outra vez ele está só, e outra vez o silêncio cai sobre ele... A angústia, que amainara um pouco, surge de novo e oprime-lhe o peito com força maior ainda. Os olhos de Iona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua: não haveria no meio desses milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvi-lo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia... Angústia enorme, que não conhece limites. Se estourasse o peito de Iona e a angústia se derramasse, ela inundaria, parece, o mundo inteiro — e, no entanto, ela é invisível. Ele conseguiu aninhar-se numa casca tão ínfima, que não se pode enxergá-la nem com lanterna à luz do sol...
Iona vê um zelador de prédio com um saco na mão e decide falar com ele.
— Mano, que horas serão? — pergunta ele.
— Passa das nove... E por que ficas parado aqui? Vai andando!
Iona afasta-se alguns passos, dobra o corpo e entrega-se à angústia... Dirigir-se aos homens ele já considera inútil. Mas não passam nem cinco minutos e ele se endireita, sacode a cabeça como se sentisse uma dor aguda e puxa as rédeas. Ele não aguenta mais.
“Para casa”, pensa ele. “Para casa!”
E a eguazinha, como que adivinhando-lhe o pensamen­to, põe-se a correr a trote miúdo. Cerca de hora e meia de­pois, Iona já está sentado junto a uma estufa grande e suja. Em cima da estufa, nos bancos, no chão, homens estão ron­cando. O ar está denso e abafado... Iona olha para os dorminhocos, coça-se, e lamenta ter voltado para casa tão cedo.
“Não ganhei nem para a aveia”, pensa ele. “É por isso que estou aflito. Um homem que entende do seu trabalho... que está de barriga cheia, assim como o seu cavalo, esse está sempre sossegado...”
Num dos cantos, acorda um cocheiro moço, pigarreia e estende a mão para o balde de água.
— Deu vontade de beber? — pergunta Iona.
— De beber, pelo visto!
— Pois é... Bom proveito.. Pois eu, mano... morreu meu filho... Soube? Esta semana, no hospital... Que história!
Iona olha para ver o efeito que produziram suas pala­vras, mas não vê nada. O moço puxou a coberta por cima da cabeça e já dorme. O velho suspira e se coça. Assim como o moço tinha vontade de beber, ele tem vontade de falar. Logo vai fazer uma semana que o filho morreu, e ele ainda não conversou direito com ninguém... É preciso conversar com vagar, com calma... É preciso contar como o filho ficou doente, como sofreu, o que disse antes de morrer, como morreu. É preciso descrever o enterro e a viagem ao hospi­tal para buscar a roupa do defunto. Na aldeia ficou uma filha, Aníssia... Também dela é preciso falar... Há tanta coisa de que ele poderia falar agora... O ouvinte deve ge­mer, suspirar, compadecer-se... Melhor ainda seria falar com mulheres. Elas podem ser burras, mas põem-se a cho­rar à segunda palavra.
“Vou ver o cavalo”, pensa Iona. “Sempre terei tempo para dormir... Dormirei até que chegue...”
Iona se veste e vai para a cavalariça, onde está a sua égua. Ele pensa na aveia, na palha, no tempo... No filho, quando está sozinho, ele não consegue pensar. Falar com alguém a respeito do filho, isso ele poderia, mas pensar so­zinho e imaginá-lo é para ele insuportável e assustador...
— Mastigas? — pergunta Iona ao seu cavalo, vendo-lhe os olhos brilhantes. – Mastiga, anda, mastiga... Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha... Pois é... Já estou velho para este trabalho... O filho é que devia trabalhar, e não eu... Aquele sim é que era cocheiro de verdade... Se ao menos vivesse...
Iona cala-se um pouco, depois continua:
— Assim é, mana eguinha... Não temos mais Kuzmá Ionitch... Foi-se desta para melhor... Pegou e morreu, à toa... Agora, imagina tu, por exemplo: tu tens um po­trinho, e tu és a mãe desse potrinho... E, de repente, ima­gina, esse mesmo potrinho se despacha desta para melhor... Dá pena ou não dá?
A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono... Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo...


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